A canoa, puxada a quatro remos, descia o pequeno afluente do Amazonas, desviando-se , ligeira, das grandes manchas de plantas aquáticas que a correnteza preguiçosamente arrastava. Quando o velho índio Tibúrcio, sustando a remada, começou a contar-me a mais famosa lenda daquelas Ribeiras:
– Antigamente, meu senhor, este rio era limpo de toda sorte de aguapé, e de corrente tão clara que se podia ver, de dia, as traíras, os piaus e os mandis rabeando no fundo, no grande leito de areia dourada. Nesse tempo, morava na cabeceira do rio, onde as águas são mais puras, um velho índio, o famoso Tauí, cuja filha JACIARA, assim chamada por ser a Senhor da Lua, era com os seus olhos mais negros do que o Acapri, a mais formosa moça da redondeza.
O caboclo enfiou, de novo, o úmido remo no grande leito do rio, fê-lo roncar Saturno, nas profundezas d’água silenciosa, e levantando-o gotejante, continuou a narrativa:
– Um dia, voltando da caça, adivinhou Tauí, de longe, a presença de um estranho na palhoça que lhe servia de casa. Arrastando-se, como uma cobra, sobre as folhas do chão, estava o pobre pai a poucos passos da porta de esteiras. Quando de lá pulou um homem, que desapareceu, de um salto, no seio da mataria.
Duas remadas ressonaram, de novo, profundas no leito do rio, impelindo a canoa.
E Tibúrcio reatou a História:
– Furioso com a traição da filha, o Índio, feroz, atirou-se contra ela, esganou-a e abriu-lhe de lado a lado, com a ponta da flecha, a caixa do peito moreno. Feito isso, enfiou no seu corpo as grandes unhas de tamanduá e arrancou-lhe, sangrento, o coração ainda palpitante que atirou da porta da palhoça à clara correnteza do rio.
Impeliu mais uma vez, a canoa ligeira, fazendo roncar no seio da água o seu pesado remo de massaranduba, e rematou:
– Desde esse tempo, meu Senhor, começaram a aparecer no rio estas verdes plantas, errantes, cuja flor, alva como a Lua, dorme no fundo das águas e rebenta, à noite, com grande estampido, espalhando por tudo, em redor, a doçura do seu perfume.
E apontando-me uma ” VITÓRIA RÉGIA”, que descia alva e enorme, nos braços carinhosos das águas, acrescentou, compungido:
– Olhe, lá vai uma, é o coração de JACIARA…
E impeliu a canoa com força.”
(Lenda de Jaciara, de Humberto de Campos, do livro “A serpente de Bronze”.